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domingo, 30 de maio de 2010

Descartes e a dúvida...

Neste estágio de nosso aprendizado em Filosofia passaremos a verificar alguns dos pensamentos que um pequeno grupo de filósofos produziu acerca, principalmente, dos temas sobre os quais nos dedicamos no momento anterior de nosso curso. Nem todos os filósofos que um dia já pensaram sobre estes temas serão trazidos à baila. Também, nem todos os temas que já discutimos serão novamente abordados; por outro lado, alguns como, por exemplo, o do Conhecimento, com o qual iniciamos esta nossa última etapa de investigação crítica, será apontado diversas vezes e de modos mais ou menos distintos por mais de um pensador. A ordem em que estes temas vão aparecer aqui obedece à ordem cronológica com que foram tratados pela história da filosofia; assim sendo, existem certos pressupostos históricos que não devem ser ignorados - a ordem em que as aulas acontecem é vital para a compreensão das mesmas.

Cada um dos pensadores que iremos destacar de agora em diante teve uma produção intelectual muitíssimo vasta. Muitos deles discutiram, de maneira global e bastante detalhada, todos os temas sobre os quais nós falaremos apenas de maneira superficial. Portanto, é mister não pensar que eles se restringiram ao que deles iremos mencionar. Trata-se apenas de um recorte, por demais modesto, dos principais pontos de suas vidas, não sob o ângulo das particularidades mundanas comuns a todos que vivem ou viveram na Terra, mas sob o ângulo do espanto filosófico com o qual cada um deles, de certa maneira, já se deparou.

O momento do espanto é aquele em que a dúvida exige um trabalho, um esforço incomum, no sentido da busca por uma satisfação intelectual que pode vir na forma de uma filosofia, de uma teoria científica, de uma música, de um quadro, enfim, de uma criação qualquer. Seja por quais vias forem que esta satisfação possa surgir, ela será necessariamente provisória como a própria vida o é. Então, nova-mente o espanto irá surgir com fôlego re-cobrado neste pensador, ou em um outro que apareça depois dele, exigindo mais uma vez um novo esforço intelectual e uma nova satisfação. Dúvida após dúvida, satisfação após satisfação, teoria após teoria, a humanidade se aproveita dos sofrimentos e das alegrias gerados por este contínuo movimento, de vai e vem, que é como a própria respiração do pensamento.

         Descartes e a Dúvida

René Descartes nasceu na França e viveu do ano de 1596 a 1650. Seu trabalho mais conhecido ganhou o nome de Discurso sobre o Método e nele percebemos sua grande preocupação com o conhecimento, mais precisamente com a maneira como o adquirimos e com os critérios que o tornam válido. Para Descartes, o Conhecimento só merece este nome, isto é, só é verdadeiro quando obedece a certos critérios de validação. Para entendermos o que seriam estes critérios de validação do conhecimento em Descartes, vamos analisar um outro de seus trabalhos, que ficou conhecido pelo nome de Meditações.

Descartes começa esta obra se colocando numa posição muito difícil. Toda a discussão que ele irá iniciar gira em torno da pergunta “Como podemos saber que realmente conhecemos aquilo que pensamos conhecer?”. Mas como ele chega a se perguntar isto? De que maneira esta dúvida surge para ele? Ela simplesmente aparece de um dia para o outro, empurrando-o a filosofar sobre o conhecimento? Vejamos. Descartes irá narrar um evento bastante singular de sua vida e que o levou a este tipo de questionamento.

Conta ele que, um certo dia, quando lia em uma poltrona diante da lareira de sua casa, ele adormeceu. Sonhou que se achava sentado numa poltrona exatamente como a que estava sentado ao adormecer, que estava vestido exata-mente como quando em vigília, que também lia o mesmo livro que antes estava lendo, que todo o cenário em volta dele era o mesmo e que a lareira também ardia como quando desperto. Ao acordar, percebeu que seu sonho tinha a viva-cidade e a riqueza de detalhes de quando ele estava de olhos abertos e consciente. De fato, ele só conseguiu perceber que se tratava de um sonho depois de acordar, tal era o realismo daquele sonho. A dúvida e o espanto, então, se abateram sobre ele, criando a seguinte pergunta: se o sonho poderia possuir uma tal vivacidade e riqueza em detalhes, idênticos ao da vida em vigília, como saber quando se está dormindo ou quando se está acordado? Em outras palavras, a sua dúvida era a respeito de como podemos saber o que seja isso que chamamos de realidade e, conseqüentemente, como podemos diferi-la do sonho e da fantasia.

Geralmente criamos uma distinção bastante radical entre realidade e fantasia. Nos baseando nesta distinção, afirmamos coisas que pensamos serem verdades, pois se fundamentam na realidade; e afirmamos coisas que pensamos serem falsidades ou quimeras pois, ao contrário das primeiras, se baseiam na fantasia ou na imaginação. Como a maioria de nós, Descartes também tinha esta distinção bem clara na sua cabeça até o momento em que este sonho o fez perceber que, talvez, essa certeza não esteja assim tão firme quanto pensamos. Ele percebeu que era possível que, em algum momento, poderia estar dormindo e acreditar que estava acordado ou vice-versa. Ele percebeu que o que separa a fantasia da realidade, que, na maioria das vezes, é a percepção consciente, pode, muitas vezes, ser colocada em dúvida e, assim, as próprias categorias de fantasia e de realidade podem deixar de existir.

Este é o momento clássico do espanto no conhecimento, quando já não temos mais certeza das coisas que antes considerávamos como certas. Mas este espanto pode ser considerado bom? Talvez sim, talvez não. Para os filósofos isto é muito bom, pois desperta a investigação crítica. Contudo, para as pessoas que estão interessadas em resultados mais práticos e imediatos, como, por exemplo, construir foguetes que coloquem satélites de comunicação em órbita da Terra, é uma enorme tolice e perda de tempo se propor este tipo de inquirição. Contudo, até o construtor de foguetes, mesmo sem o saber, está de acordo com algum tipo de concepção filosófica que, em algum momento do passado, surgiu de uma situação de espanto semelhante a de Descartes.

Descartes sabia que sua dúvida não era comum, que a maioria das pessoas não encontrava dificuldade nenhuma em diferir uma suposta realidade da fantasia comum dos sonhos. Porém, ele também sabia que uma argumentação deste tipo, baseada no testemunho popular, não tinha o rigor da análise filosófica. O conhecimento popular, também conhecido como Senso Comum, não costuma apresentar as demonstrações assim como a filosofia imagina que elas devam ser. Em geral, o senso comum fornece as explicações acerca da existência apontando para exemplos do presente ou do passado como, por exemplo, “A realidade é o meu cachorro, a minha árvore, a minha casa, o meu trabalho etc”. Ele estava interessado em outro tipo de explicação. Em uma que apresentasse uma argumentação baseada no uso exclusivo da Razão e não nas que se baseassem numa imensa lista de objetos e opiniões particulares. Ele sabia que estes objetos opiniões poderiam variar de pessoa para pessoa, de lugar para lugar, de época para época e que, por isso, as explicações do senso comum eram particulares e não poderiam ter o poder de convencer a todos acerca do que fosse, ou deixasse de ser, a Realidade.

Ele estava interessado em uma explicação que, ao contrário, fosse válida para todos os seres humanos, na medida em que, em princípio, todos os seres humanos são dotados de Razão; que fosse Universal portanto. Mas mais do que isso, Descartes acreditava que uma explicação sobre a Realidade deveria ser necessária, isto é, que qualquer ser dotado da faculdade do raciocínio chegaria necessariamente às mesmas conclusões que ele se obedecesse a algumas regras simples de investigação, se obedecesse a um método.

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